ESTRELA MANHÃ


Como dois náufragos, encontraram-se numa praia quase deserta.

E eram, de fato, náufragos; e a praia do mar era, para eles, a praia da vida. Porque há raras oportunidades em que o oceano da vida concede, aos seus navegantes, um rápido descanso, em uma praia ocasional.

E, como quem naufraga e se agarra a qualquer palha, agarraram-se às menores coisas, para que pudessem deixar de sentir o próprio desejo de aturdir-se.

Um se agarrou aos olhos do outro, e cada um procurou refúgio no som das palavras e na confusão dos pensamentos, para não ouvir os seus sentimentos.

E o sol alternou céu e chuva, como querendo compartilhar das suas certezas e dúvidas.

As bocas falaram de coisas que não precisavam ser ditas, e os olhos disseram tudo que era preciso.

Confundiram as emoções no ruído do mar, e reclinaram o cansaço da vida nas pedras que pontuavam de negro o branco da areia.

E se entregaram e se possuíram, sem que entre os corpos houvesse mais do que um casual e fugitivo encontro de mãos. E nessa entrega, que desejavam total, cada um procurava resguardar-se, temendo o sofrimento que vem da mesma doação que traz a felicidade.

Beberam cerveja, como se já não estivessem embriagados da presença mútua; como se a sobriedade fosse uma espécie de muro que os impedisse de romper o muro que eles mesmos erguiam entre si.

Molharam seus corpos, como se assim pudessem lavar-se das ideias, dos conceitos e preconceitos, da disciplina que se haviam imposto para sobreviver.

E conviveram com os outros, numa tentativa de evitar a própria convivência, tão temida e necessária.

E, porque estavam felizes, os outros eram bons; as pessoas sentiam a felicidade que os cercava e deles se aproximavam, procurando absorver um pouco daquela felicidade. Como se a felicidade fosse algo que se pudesse encontrar; que não estivesse dentro de cada ser, em fugazes momentos de realização.

Apanharam pedras e búzios, porque eram bonitos. E no desejo inconsciente de guardar uma lembrança material do dia em que nada houve e foi como se houvesse tudo.

E – curioso! – justamente por nada ter havido, a memória guardaria a lembrança, junto ao sonho de que tivesse havido tudo.

Era mais que a realidade, por ser um sonho; e era melhor que um sonho, por ser realidade. E o tempo rolou, como parte da realidade, por sobre as ondas do sonho.

E terminou o tempo destinado ao sonho; mas jamais terminaria o sonho, que não depende do tempo.

Mas, como o tempo terminou, eles se foram. Embora não houvessem partido, pois as suas vibrações de certezas e dúvidas, de medo e felicidade, ficaram gravadas: na areia, no vento, na luz do sol e no próprio tempo que transcorreu naquele dia.

E assim, quando terminou o que não havia começado, era na verdade o começo de algo que eles não conseguiriam terminar.

Porque o homem pode dar fim a tudo, menos ao tempo e ao amor.

Vídeo

Esta música era muito popular, quando escrevi o texto. Acho que tem tudo a ver... 

Comentários

  1. Profunda reflexion uno siempre debe estar preparado para el amor. Te mando un beso.

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    1. Com certeza, JP: todos devemos estar, o tempo todo, preparados para a chegada do amor. Meu abraço, obrigado; bom resto de semana!

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  2. Muito bonito isso, parceiro! Continue contando esses contos que tanto me encantam.
    Um abraço, nem tanto apertado para não sufocar sua fala.

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    1. Eu não gosto de tudo que escrevo, mestre, você sabe; mas esse texto também me agrada muito! Meu abraço, obrigado; bom resto de semana!

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  3. Flávio,
    Que texto mais gostoso
    de ler e de depois ficar
    pensando a respeito.
    Achei esse fechamento
    "Porque o homem pode dar fim a tudo, menos ao tempo e ao amor" Flávio
    ejunto cm o video: perfeitos.
    Bjins&Abraço de ótimo
    fim de semana
    CatiahôAlc.

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    1. Obrigado, Catiahô. Gosto muito dele, também, como disse ao nosso amigo Sílvio. Meu abraço, amiga; bom resto de semana.

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  4. Olá, amigo Flávio!
    Duas coisas me chamaram muita atenção.
    "Temendo o sofrimento que vem da mesma doação que traz a felicidade."
    Grande verdade.
    "E terminou o tempo destinado ao sonho; mas jamais terminaria o sonho, que não depende do tempo."
    Outra grande verdade.
    Um belo texto com sabedoria vivencial.
    Os dois últimos parágrafos sao profundos e belos.
    " ohomem pode dar fim a tudo, menos ao tempo e ao amor."
    Tenha uma nova semana abençoada!
    Abraços fraternos

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    1. Grato, Rosélia. Lembro de ter lido, ou escrito: "a porta por onde entra a felicidade é a mesma que pode deixar passar o sofrimento"; acho que é bem por aí. Meu abraço, amiga; bom resto de semana!

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  5. Bom dia, Flávio
    Postagem reflexiva. A beleza de um olhar, poucos conseguem enxergar, linda imagem, um forte abraço.

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    1. Como dizia Saint-Exupèry, Lucinalva: só se vê bem com o coração. Meu abraço, obrigado; bom resto de semana!

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  6. O que mais dizer além de te aplaudir?
    Lindo, tocante e delicioso texto!
    Adorei!
    abraços praianos, chica

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    1. Bom que você gostou, Chica! A praia tá boa aí, né? E eu, feliz por vocês! Obrigado, meu abraço; bom resto praiano de semana.

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  7. Boa terça-feira. Com muita paz e saúde. Uma dia maravilhoso, meu amigo Flávio. Parabéns pelo seu texto e muito reflexivo. A cidade do Rio de Janeiro passou por muitas transformações, desde o século XVI. Mais ainda possui lugares desse século e já postei no Blogger. Obrigado por sua visita e comentário. Grande abraço carioca.

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    1. Nosso Rio é lindo, Luiz! Obrigado, amigo, meu abraço; bom resto de semana.

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  8. O melhor do que não aconteceu é mesmo não ter acontecido, pois não hã confronto com a realidade.

    Desconhecia a canção.


    Abraço, meu amigo, tudo de bom.

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    1. Linda a música, não é, São? E cito algo que li, não lembro onde: "Há ilusões que valem uma vida, mas não há vida que valha uma ilusão.". Bonito, né? Meu abraço, amiga, obrigado; bom resto de semana.

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  9. Respostas
    1. E eu gostei de saber, Isy! Meu abraço, obrigado; bom resto de semana.

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  10. "E porque há raras oportunidades em que o oceano da vida concede, aos seus navegantes, um rápido descanso, ..." eles foram viver a vida. E é assim que deve ser. O aqui e agora.
    Texto maravilhoso! Adorei.
    Bjsssssss, Marli

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    1. Sempre, Marli! Se o "agora" é sempre feliz, feliz foi o passado e feliz será o futuro. ;) Meu abraço, bom ver você outra vez! Obrigado, bom resto de semana.

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  11. Boa noite Amigo Flávio,
    Que forma tão bela, tão enternecedora, tão contemplativa, de transmitir as emoções de dois apaixonados.
    O texto é maravilhoso, cheio de delicadeza numa descrição poética que o tornou brilhante!
    Parabéns, Flávio! Gostei imenso.
    O vídeo é lindo também, em sintonia.
    Continuação de boa semana.
    Beijinhos,
    Emília

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    1. Grato, Emília! É interessante como o vídeo complementa o texto, não é? Meu abraço, amiga, obrigado; bom resto de semana!

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