O VELHO NO MICRO-ONDAS


Tarde de domingo, depois do almoço.

Sentado na cozinha, olho para a superfície brilhante do micro-ondas; e vejo um velho, de cabelos brancos e revoltos, que me olha com a mesma expressão de estranheza e curiosidade.

Penso: onde foi parar aquele garoto, cheio de dúvidas e esperanças, que me encarava do espelho, com os olhos brilhando e os mesmos cabelos rebeldes, então castanho-claros?

E, mais importante: o que esse velho fez com ele? Quem é esse homem, que me olha do micro-ondas, como se me fizesse as mesmas perguntas e esperasse que eu tivesse as respostas?

Então, percebo que não as tenho; que, tanto tempo depois, ainda sou o mesmo garoto, cheio de dúvidas e esperanças. Certo que umas e outras diminuíram; ou mudaram, com o tempo.

Mas ainda estão em mim. E continuam a me empurrar para a frente; ou, às vezes, me fazem deter os passos, quando em situações que não entendo. De toda forma, me mantêm vivo.

Por que se costuma imaginar que velhice é sabedoria? Aprendi que não é bem assim. Velhice é experiência, e nada mais do que isso; são vivências, acumuladas ao longo dos anos.

Sabedoria é saber usar a experiência. De nada serve a mochila que o andarilho carrega, se ele não a abre para usar o que trouxe; torna-se apenas um peso desnecessário e custoso.

Em suma, tudo é uma escala de valores; ou algumas escalas, já que a importância dos valores varia, conforme a idade que temos. É preciso que nos adaptemos a essas variações.

Com certeza, o valor maior é a vida. É dele que derivam todos os outros; nada podemos fazer, querer ou sentir, se não estivermos vivos. Entretanto, como já a temos, não atentamos a isso.

Buscamos, portanto, os outros valores; as coisas que, segundo aprendemos, complementam a vida. E é aí que descobrimos o egoísmo, o desejo, a vaidade, a frustração e o orgulho.

A criança desconhece o significado de todas essas palavras. Porque, na sua escala, o valor maior é viver; é brincar, correr em meio às outras, sorrir e gritar, seja de alegria ou quando lhe dói.

Depois, crescemos. E a idade muda a ordem dos valores, em nossa escala; passamos a ligar a nossas roupas, nossa casa, nosso bairro e às opiniões alheias. Sacrificamos a liberdade.

Nesta tarde de domingo, eu e o velho do micro-ondas percebemos tudo isto. É assim que crescemos e envelhecemos. Ao longo do tempo, cultuamos a vida, a alegria o amor, a fé ou a riqueza.

Quando envelhecemos, deixamos de brigar por ideias; de discutir, de querer ter razão sempre. E isto não significa que desistimos de nossas opiniões; apenas, que acreditamos realmente nelas.

Fingimos ceder, porque já não precisamos estar certos. Aprendemos que a discussão não leva a nada; é importante desfrutar de cada momento da vida. Não sabemos quantos mais teremos.

Para o velho no micro-ondas, o valor maior é a paz.

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Comentários

  1. Que texto simples e perfeito.
    Parabéns!!!!

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  2. Espero que nenhum parente queira este fim para mim (risos).
    Conheço caso de bandido sequestrar e sumir com a vítima que,
    muitas vezes são mortas no microondas. (um tipo de forno).
    Lembra do jornalista Tim Lopes? Pois é...
    Abraços, meu amigo e oh! Os livros são maravilhosos, viu!
    Obrigado de novo.

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    1. Bom saber que você gostou, mestre; sua opinião é importante pra mim. Quanto ao fim, não se preocupe; tenho fé em Deus que ele ainda está bem longe! :) Meu abraço, bom fim de semana.

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    2. Não comento o que não vejo, por isso me escondo do lado de cá dessa página para dizer que velho, não é quando se tem muito tempo de vida, mas quando se joga na piscina e não sabe como sair. A desculpa seria a bedida? Claro que não. É o desgraçado do tempo que, tal qual um rolo compressor nos esmaga na passagem, se dó e nem piedade. Desculpa, meu jovem, mas é o que eu tinha pra hoje.
      Um abraço e, socorro, me tragam um guincho para sacar o amigo do poço em que se meteu!

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    3. Só hoje, amigo, vi este comentário; por isto, a demora na resposta. Mas, quanto ao guincho... peraí um pouco, que vou usar ele pra mim primeiro! Meu abraço, bom resto de semana.

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  3. Eu levo casa SUSTO ao passar por uma superfície reflexiva,rs...Mas, por dentro,a mesma! Lindo te ler! abraços, chica

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  4. Verdade, Chica: pouco mudamos, por dentro; e, tenho certeza, são mudanças para melhor! Meu abraço, amiga, obrigado; bom fim de semana.

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  5. Boa tarde de paz, Flávio!
    Interessante que a menina/o menino que fomos ainda vive em nós cheios de sonhos e ideais ao alcance...
    Um belo post li aqui, com sabedoria.
    Tenha uma nova semana abençoada!
    Abraços fraternos

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    1. Felizes somos nós, Rosélia, que ainda conservamos a criança em nosso interior! Meu abraço, obrigado; bom resto de semana!

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    1. Tem que ser, Rô... só assim vale a pena! ;) Meu abraço, obrigado; bom resto de semana.

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  7. Precioso texto con buenos consejos que hacen vibrar el alma entristecida que por circunstancias se niega a soñar de nuevo.
    Feliz año nuevo que llegue colmado de salud de paz y de amor para el mundo mundial.

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    1. Só hoje, Marina, vi este comentário, que me deixou feliz: é muito bom rever-te, amiga! Obrigado, meu abraço; boa semana e que este ano te seja muito, muito feliz!

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  8. Um texto rico de sabedoria e verdades. A imagem no micro-ondas é poética, amei!
    Ainda bem que existe em mim a força daquela criança sonhadora e guerreira que queria desbravar o mundo, é essa mesma força e vontade que preciso para enfrentar ... o tempo... (risos).

    Abraço, paz e luz

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    1. Desculpa pela demora na resposta, Fatyma; só hoje li este comentário. E concordo inteiramente: felizes são aqueles que conservam em si a força das crianças; torna-se mais fácil enfrentar o tempo! Meu abraço, obrigado; bom resto de semana.

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  9. Adorei o que escreveu caro Flávio e a música não podia ter sido mais bem escolhida.
    Que bom quando não deixamos apagar a criança que temos em nós.
    Confesso que sorri quando falou da sua imagem reflectida no micro ondas.
    Faz dias aconteceu o mesmo comigo, mas não foi a minha imagem que lá vi, mas sim as dedadas do meu neto Lourenço :)
    Abraço e brisas doces **

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    1. Sempre bom rever-te, Maria. Desculpa-me, também, pela demora na resposta: só hoje, vi este comentário. Netos são uma beleza, não é?! :) Meu abraço, obrigado; bom resto de semana.

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